Lipoproteína a e o risco cardiovascular
- Equipe Ênio Panetti

- 22 de set.
- 6 min de leitura

Quando falamos em colesterol, a maior parte das pessoas já ouviu falar do LDL (o “colesterol ruim”) e do HDL (o “colesterol bom”). No entanto, existe uma partícula menos conhecida, chamada lipoproteína(a) ou Lp(a), que vem ganhando grande destaque na medicina cardiovascular.
Pouca gente sabe, mas a Lp(a) pode ser um fator de risco tão importante quanto o LDL, principalmente porque atua de maneira independente, aumentando o risco de infarto, AVC e doenças das artérias mesmo em pessoas com níveis de colesterol aparentemente normais.
Nos últimos anos, as grandes diretrizes internacionais passaram a dar mais atenção à Lp(a). A Sociedade Europeia de Cardiologia (ESC), por exemplo, recomenda que todas as pessoas façam a dosagem pelo menos uma vez na vida. Essa simples medida pode mudar a forma como interpretamos o risco de cada paciente.
Neste artigo, vamos explicar de maneira acessível o que é a lipoproteína(a), como ela se relaciona com o risco cardiovascular, quais os mecanismos de ação – incluindo sua influência na formação de fibrina – e o que você pode fazer para cuidar da sua saúde.
O que é a lipoproteína(a)?
A lipoproteína(a), abreviada como Lp(a), é uma partícula semelhante ao LDL. Ela carrega colesterol e gorduras pelo sangue, mas tem uma característica única: além das proteínas presentes no LDL (como a apolipoproteína B-100), a Lp(a) contém também outra proteína chamada apolipoproteína(a).
Essa estrutura extra faz toda a diferença. A presença da apolipoproteína(a) dá à Lp(a) propriedades que vão além do simples transporte de colesterol, interferindo em processos de coagulação e inflamação no organismo.
Diferentemente do LDL e do HDL, que sofrem influência direta da alimentação e do estilo de vida, os níveis de Lp(a) são quase totalmente determinados pela genética. Isso significa que uma pessoa pode ter níveis elevados desde o nascimento e mantê-los estáveis ao longo da vida, sem que dieta ou exercícios mudem significativamente essa concentração
【American Heart Association, 2023】.
Por que a lipoproteína(a) é perigosa?
O grande problema da Lp(a) é que ela atua como um fator de risco independente. Em outras palavras, mesmo que uma pessoa tenha o LDL controlado, não fume e mantenha hábitos saudáveis, níveis altos de Lp(a) ainda aumentam o risco cardiovascular.
Estudos populacionais mostram que cerca de 20% da população mundial apresenta níveis elevados de Lp(a), acima de 50 mg/dL, patamar considerado de risco【Tsimikas, European Heart Journal, 2023】.
Entre os principais mecanismos de risco associados à Lp(a), destacam-se:
Aceleração da aterosclerose: a Lp(a) se deposita nas paredes das artérias, contribuindo para a formação de placas de gordura.
Efeito inflamatório: a apolipoproteína(a) ativa processos inflamatórios que tornam as placas mais instáveis, aumentando a chance de ruptura.
Interferência na coagulação: aqui está um ponto crucial. A Lp(a) tem semelhança estrutural com o plasminogênio, uma molécula fundamental na dissolução de coágulos. Essa semelhança faz com que a Lp(a) atrapalhe a quebra da fibrina, proteína responsável pela formação de trombos. Ou seja, a Lp(a) facilita a formação e a manutenção de coágulos【Koschinsky & Marcovina, Arteriosclerosis Thrombosis and Vascular Biology, 2022】.
Esse último aspecto é particularmente importante: níveis altos de Lp(a) não apenas entopem artérias com placas de gordura, mas também favorecem a formação de coágulos, aumentando o risco de infartos súbitos e acidentes vasculares cerebrais.
A recomendação da ESC: medir pelo menos uma vez na vida
Por muitos anos, a Lp(a) foi considerada apenas um detalhe secundário. Mas as evidências se acumularam a ponto de mudar as recomendações.
O guideline de prevenção cardiovascular da Sociedade Europeia de Cardiologia (ESC) de 2019, reforçado por posicionamentos posteriores, sugere que todos os adultos façam a dosagem da lipoproteína(a) pelo menos uma vez na vida【ESC Guidelines, European Heart Journal, 2019】.
Essa recomendação se deve ao fato de que:
A Lp(a) é fortemente determinada por fatores genéticos e não varia muito ao longo da vida. Uma única dosagem já fornece informação suficiente para estratificar o risco.
Identificar pessoas com níveis muito altos ajuda o médico a ser mais agressivo na prevenção: uso mais precoce de estatinas, ezetimiba ou até terapias avançadas.
Pacientes com história familiar de infarto precoce (antes dos 55 anos nos homens e 65 anos nas mulheres) têm maior chance de apresentar Lp(a) elevada.
Portanto, medir a Lp(a) é uma forma simples de descobrir se você pertence ao grupo de risco oculto que não aparece nos exames de colesterol tradicionais.
Lipoproteína(a) e fibrina: o elo com a coagulação
Um dos mecanismos mais interessantes – e perigosos – da Lp(a) é sua relação com a fibrina, proteína que participa da formação dos coágulos sanguíneos.
A fibrina atua como uma espécie de “cola”, unindo plaquetas e outras moléculas para formar o trombo que interrompe sangramentos. O corpo possui sistemas naturais para dissolver esses coágulos quando eles não são mais necessários. O principal é o plasminogênio, que se transforma em plasmina, responsável por quebrar a fibrina.
O problema é que a apolipoproteína(a), presente na Lp(a), tem uma estrutura muito parecida com a do plasminogênio. Isso faz com que ela compita pelos mesmos locais de ligação, mas sem exercer a função de dissolver a fibrina.
Em resumo:
A Lp(a) se liga à fibrina, impedindo que o plasminogênio atue.
Isso dificulta a quebra natural dos coágulos.
O resultado é um sangue mais “propenso” a formar trombos persistentes.
Esse mecanismo explica por que a Lp(a) aumenta o risco de trombose arterial e venosa de forma independente do LDL【Boffa & Koschinsky, Journal of Thrombosis and Haemostasis, 2021】.
Como interpretar o resultado do exame
O exame de Lp(a) pode ser expresso em mg/dL ou em nmol/L, dependendo do laboratório. Apesar das variações de método, a maioria dos especialistas considera:
Valores abaixo de 30 mg/dL (ou 75 nmol/L) → risco baixo.
Entre 30 e 50 mg/dL (ou 75 a 125 nmol/L) → risco intermediário.
Acima de 50 mg/dL (ou 125 nmol/L) → risco elevado.
É importante que o resultado seja analisado em conjunto com outros fatores de risco, como LDL, pressão arterial, diabetes, tabagismo e histórico familiar.
Existe tratamento para reduzir a Lp(a)?
Aqui está um ponto delicado: não existe ainda um tratamento específico aprovado para reduzir a lipoproteína(a).
Estatinas, remédios muito usados para baixar o LDL, não reduzem a Lp(a) – e em alguns casos podem até aumentá-la discretamente【Mayo Clinic Proceedings, 2021】.
No entanto, outras terapias estão em estudo:
Inibidores de PCSK9 (alirocumabe, evolocumabe): além de reduzirem o LDL em até 60%, também podem baixar a Lp(a) em torno de 20 a 30%.
Terapias experimentais com RNA de interferência (como o pelacarsen): prometem reduções de até 80% nos níveis de Lp(a), mas ainda estão em fases finais de testes clínicos【Nissen et al., New England Journal of Medicine, 2022】.
Enquanto essas opções não chegam de forma ampla, a estratégia é controlar de forma intensiva todos os outros fatores de risco, especialmente o LDL, que já tem terapias consolidadas e eficazes.
Quando desconfiar de níveis altos de Lp(a)?
Algumas situações devem acender o alerta para o médico pedir o exame de Lp(a):
Histórico familiar de infarto ou AVC precoce.
Paciente jovem que já apresentou doença arterial coronariana.
Pessoas com aterosclerose significativa sem fatores de risco tradicionais aparentes.
Pacientes com LDL bem controlado, mas que continuam a ter eventos cardiovasculares.
Nesses casos, a Lp(a) pode ser o elo perdido que explica o risco residual.
O que você pode fazer?
Mesmo que não exista um remédio específico para a Lp(a) disponível em larga escala, existem ações práticas para reduzir o impacto desse fator de risco:
Controle agressivo do LDL – quanto mais baixo o LDL, menor a chance de que a Lp(a) exerça seus efeitos.
Estilo de vida saudável – manter peso adequado, praticar atividade física, não fumar e controlar a pressão arterial.
Acompanhamento médico regular – especialmente se houver histórico familiar de doença cardiovascular precoce.
Atenção às novas terapias – nos próximos anos, os tratamentos direcionados para Lp(a) devem se tornar realidade.
Box: o que você precisa lembrar sobre a lipoproteína(a)?
A Lp(a) é uma partícula semelhante ao LDL, mas com uma proteína extra (apolipoproteína(a)).
Seus níveis são genéticos e praticamente não mudam com dieta ou exercício.
É um fator de risco independente, aumentando as chances de infarto e AVC mesmo com colesterol normal.
A ESC recomenda dosar pelo menos uma vez na vida.
Atua também dificultando a quebra da fibrina, favorecendo a formação de trombos.
Não há tratamento específico ainda, mas novas terapias estão em desenvolvimento.
Conclusão
A lipoproteína(a) é um dos grandes avanços recentes no entendimento do risco cardiovascular. Por muito tempo, médicos e pacientes focaram apenas no LDL, mas hoje sabemos que a Lp(a) pode explicar casos de doença cardíaca em pessoas aparentemente saudáveis.
Dosar esse marcador pelo menos uma vez na vida é uma medida simples, barata e recomendada pelas diretrizes internacionais. Identificar níveis elevados permite uma prevenção mais personalizada e pode salvar vidas.
Nos próximos anos, com a chegada de terapias específicas, a Lp(a) deve ganhar ainda mais relevância na prática clínica. Até lá, controlar os demais fatores de risco continua sendo a melhor forma de proteger o coração.
📌 Referências principais (citadas no texto):
American Heart Association. Lipoprotein(a) and cardiovascular risk. 2023.
Tsimikas S. Lipoprotein(a): novel target and emergence of therapies. Eur Heart J. 2023.
Koschinsky ML, Marcovina SM. Lipoprotein(a): structure, function, and role in atherothrombosis. Arterioscler Thromb Vasc Biol. 2022.
Boffa MB, Koschinsky ML. Lipoprotein(a) as a risk factor for thrombosis. J Thromb Haemost. 2021.
European Society of Cardiology. 2019 Guidelines on cardiovascular disease prevention in clinical practice. Eur Heart J. 2019.
Nissen SE, et al. Antisense therapy targeting lipoprotein(a). N Engl J Med. 2022.
Mayo Clinic Proceedings. Lipoprotein(a) and cardiovascular risk management. 2021.
Ênio Panetti - CRM 52.56781-1



Comentários